terça-feira, 12 de maio de 2015

Escrivaninhas e escravaturas

Às 22:17 sentava-me à escrivaninha. Escrevia, escrevia, escrevia: um bando de palavras vazias. Eu era escravo de mim mesmo e não sabia.
Modas rodeavam minha cabeça, eu cantarolava, por vezes estremecia... A rua, vista da janela, estava vazia. Há quem diga que, há cinco minutos, muita gente havia naquele boteco em que todos os boêmios esqueciam. Mas esqueciam de quê? Será que realmente há o que lembrar?
Eu lembrava, lembrava, lembrava até do que eu não sabia. A mulher que não tive, os filhos que não nasceram, os sobrinhos que moravam perto e não lembravam de dizer bom-dia. As flores que eu não trazia, o veneno para ratos que eu mesmo comia: a pura nostalgia. Dezessete anos sozinho e, daqui para a frente, nada mudaria. Eu era escravo de mim mesmo e não sabia.
Vovó sempre dissera a mim as coisas mais bonitas... Enumerava-as como uma lista, uma lista de truques para a vida. Eu nunca as anotei, pobre de mim, mal sabia que um dia eu as precisaria. Deixou-me, além da memória, laranjeiras, pomares e parreiras. Um dia hei de viver sob elas, sob a lua, espiando da rua a janela, com minhas duas sobrinhas fazendo graça pela casa e imitando o barulho do vento (elas imitavam mui bem feito).
Assoviei uma moda, sorri, segui sentado à escrivaninha. Às 23:47 eu ainda era escravo de mim mesmo e jamais o porquê eu saberia.
Eu esquecia, esquecia, esquecia tudo o que eu sabia. A mulher que tive, os filhos que nasceram, os sobrinhos que moravam longe e sempre lembravam de dizer bom-dia. As flores que eu trazia, o veneno para os ratos que tanto nojo eu tinha: a pura nostalgia. Dezessete anos sozinho e, daqui para a frente, tudo mudaria. A morte de minha memória era minha senhora e eu sofria.

O barulho estridente do vento congelava minha face. Fechei a janela, adormeci. Que vida vazia...