Às
22:17 sentava-me à escrivaninha. Escrevia, escrevia, escrevia: um bando de
palavras vazias. Eu era escravo de mim mesmo e não sabia.
Modas
rodeavam minha cabeça, eu cantarolava, por vezes estremecia... A rua, vista da janela,
estava vazia. Há quem diga que, há cinco minutos, muita gente havia naquele
boteco em que todos os boêmios esqueciam. Mas esqueciam de quê? Será que
realmente há o que lembrar?
Eu
lembrava, lembrava, lembrava até do que eu não sabia. A mulher que não tive, os
filhos que não nasceram, os sobrinhos que moravam perto e não lembravam de
dizer bom-dia. As flores que eu não trazia, o veneno para ratos que eu mesmo
comia: a pura nostalgia. Dezessete anos sozinho e, daqui para a frente, nada
mudaria. Eu era escravo de mim mesmo e não sabia.
Vovó
sempre dissera a mim as coisas mais bonitas... Enumerava-as como uma lista, uma
lista de truques para a vida. Eu nunca as anotei, pobre de mim, mal sabia que
um dia eu as precisaria. Deixou-me, além da memória, laranjeiras, pomares e
parreiras. Um dia hei de viver sob elas, sob a lua, espiando da rua a janela,
com minhas duas sobrinhas fazendo graça pela casa e imitando o barulho do vento
(elas imitavam mui bem feito).
Assoviei
uma moda, sorri, segui sentado à escrivaninha. Às 23:47 eu ainda era escravo de
mim mesmo e jamais o porquê eu saberia.
Eu
esquecia, esquecia, esquecia tudo o que eu sabia. A mulher que tive, os filhos
que nasceram, os sobrinhos que moravam longe e sempre lembravam de dizer
bom-dia. As flores que eu trazia, o veneno para os ratos que tanto nojo eu
tinha: a pura nostalgia. Dezessete anos sozinho e, daqui para a frente, tudo
mudaria. A morte de minha memória era minha senhora e eu sofria.
O
barulho estridente do vento congelava minha face. Fechei a janela, adormeci.
Que vida vazia...