sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

A vida e a morte revisitadas.

Esquecidamente, existi no sofá. Meu melhor amigo era um não tão moderno micro-ondas que tem, em seu teto, uma cafeteira acoplada. Nela, os barulhos mais estranhos – os quais já estou acostumada – se fazem ao gerar os grãos moídos e torrados em saboroso líquido negro. Jazi com as pernas para cima e os cabelos arrastando pelo chão, os olhos fechados – eu era mesmo morta – e no punho direito um relógio. Eu era morta-viva de mim mesma nestes nostálgicos dias de chuva. Tão morta que nenhum espírito me observava do corredor ou da abertura que dava para a cozinha. Tão viva que as mãos dançavam em volta de minhas pernas tentando imaginar prazer. Mas o contato com as outras pessoas do mundo era tão pouco que os dedos esqueciam o sorriso escondido dentro do suor dos lábios.
Eu tinha muitos livros: acabava e recomeçava, alguns ficavam pelo caminho, outros, de tão nauseantes, tapavam as goteiras de minha casa – que a cada dia que passa, multiplicam-se – e serviam apenas para não incomodar mamãe na hora do jantar. Minha solidão é tão vasta que me faz esquecer que tenho companhia por aqui. Solidão, vasta solidão, se eu me chamasse Raimunda não seria rima, tampouco solução. Não obstante, meu favorito era Rayuela, logo depois, uma grande saga que tomou meu coração e meus dias de pré-adolescência.
As memórias consumiam minha alma até o buraco mais profundo e eu adiava todos os acontecimentos para as datas mais distantes possíveis (mesmo quando se tratava de meu aniversário). Não há o que comemorar quando se está morrendo. A vida havia me deixado de lado, e eu nada mais podia fazer senão deixá-la de lado também. Era todo meu eu buscando sentido há tempos, mas tudo o que encontrou foi sentido nenhum. Eu virei pedra em jogo de amarelinha. Eu tirei todo o álcool do gim e nada restou. Minhas mãos tremem e eu não posso conter meu Parkinson temporário. Por fim, sumi.

Reexisti, pacificamente, no sofá. Minha cama já não me aceitava mais e meu melhor amigo era um bule com muito café dentro. Todas as fumaças esverdeadas e a poeira cristalina e refinada foram vendidas. Meu século é passado, mas coexisto em harmonia, assim como toda a história antes de mim. Meu sobrenome carrega desgraça, e eu carrego poesia.