quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Perguntar não dói, Luzia.

- Conte-me então, Luzia. O que se passa em sua mente contrubada?
- Pois é, Doutor Albert... Eu estou sentido coisas estranhas... como... pressentimentos. É como se eu soubesse o que vai acontecer. Essas coisas nem sempre são boas, mas eu espero por elas, quero que elas aconteçam. Eu tenho sonhos. Todas as noites o mesmo sonho. Eu estou parada em uma rua deserta, sem casas ou qualquer sinal de vida. E aí uma menina de capa vermelha se aproxima de mim. Ela tira a capa e me beija. Então eu a olho bem nos olhos e ela desaparece, mas eu nunca sei quem ela é. Sempre acordo no mesmo horário, assustada...
Lágrimas. Ela estava realmente assustada. Luzia era uma das poucas pacientes que eu podia chamar de amiga. Ela tinha 14 anos e uma mente extremamente brilhante. Sabia de crimes melhor do que qualquer policial da Scotland Yard. Lia viciadamente os contos do Allan Poe. Era triste, solitária, porém uma mocinha muito bonita. Seu nome combinava muito com seu rosto, e eu gostava disso. Ruiva, naquele tom aberto de laranja, natural. Olhos castanhos, do mais intenso castanho que alguém já viu na vida. A pele era tão branca que parecia que ela estava doente. Profundas olheiras. Magreza anoréxica. Minha paciente favorita.
-...O Edgar está sempre me olhando quando acordo, após o sonho. Acho que ele quer me dizer alguma coisa... se gatos falassem, com certeza ele me contaria tudo o que pensa. O Edgar é meu melhor amigo, sabe. Acho que tu és o único ser humanos no meu pequeno mundinho. Hum, o senhor sabe que... aconteceu uma coisa engraçada... Eu estava andando lá pela zona norte, mais precisamente na Avenida Plínio Brasil Milano... vi um homem, parado, fumando. Isso me fez pensar muitas coisas.
- Que coisas?
- O que será que eles pensam enquanto fumam? O que será que eles querem quando sorriem? O que será que acontece se eu ligar no meio da transa que ele está tendo com outra? Será que os polos deles são positivo e negativo? Será que eles vêm de Marte mesmo? Será que ela gosta mesmo dele ou está só por interesse? E ele gosta mesmo dela? E eles gostam de enganar ou enganam involuntáriamente?
- Eles quem?
- Os homens. Eles são foram uma boa invenção, mas depois que o pecado entrou no mundo... malditas sejam as maçãs! "Fez o homem à sua imagem e semelhança..." Será que quando eu encontrar Deus ele estará parado, numa terça-feira à tarde, em frente aos correios da Avenida Plínio Brasil Milano, fumando um cigarro e olhando pro nada? Este foi o homem que eu vi. Esta é a imagem de homem que quero guardar. O meu ainda me satisfaz, mas será que um dia não mais o fará? Será que encontrei pessoa melhor? Será que a pessoa que eu quero encontrar depois dele vai ser melhor? Nada é melhor, não é? Acho que tudo é igual, só o jeito de acontecer é diferente. Nem você é melhor que eu, ou eu sou melhor que você. Não entendo os seres humanos. Não entendo os homens. Eles são homens-objeto ou realmente devem ser amados? Será que ser homem é dizer que tudo está "certo-certo-certo" e ter como verbos preferidos "entrar" e "sair"? É estuprar virgens? É transar com ninfetas? É pagar cem reais para se satisfazer? É pagar mais do que isso?

Não tive palavras para respondê-la. Aquelas indagações me pareciam complexas demais, logo eu, que sou psiquiatra e estudei mais de dez anos para estar onde estou. Isto me fez pensar se vale a pena estar aqui. Ser o que sou. Um psiquiatra, a vida inteira observando loucos, drogando-os, fazendo-os regredir mais e mais com aqueles medicamentos... Me viciando em remédios para bipolaridade, tendo casos com meninas de 20 anos. Não casei, não tenho filhos. Tenho 50 anos e uma alma pequena. Não vale a pena. Luzia me mostrou que não. Mas ela é só mais uma paciente. Não é não. Luzia era a minha estrela guia, ponta de inocência na malícia. Era a menina dos meus olhos... Luzia. Nunca vi cabelo mais laranja e natural. Nunca vi dentes e pele tão brancos. Nuncia ouvi tão suave voz. Eram 14 anos de vida. Não pensava em ter nada com ela, não, nunca pensei. Gostaria mesmo era de tê-la como filha, mas ela já tem mãe e pai, eles se gostam muito. O que ela não tem é amigos... amigos... também não os tenho, acho que me identifico com a garota. Mas ela gosta de gatos. Eu não os suporto. Acho que faria com eles o que foi feito no conto de Edgar Allan Poe. Matar é cruel, ainda mais o pobre bichinho, não teria coragem de fazê-lo. Sou seco mas não sou ruim. Ela foi embora. Luzia foi.
- Eu sou louca, não é mãe?
- Não filha! Você só está um pouco transtornada com esses problemas do colégio. Não se preocupe demais, o Dr. Albert sempre esteve com você, desde quando começaram aqueles sonhos. Ele estará até o fim, esteja segura disso. Pelo menos disso.
- Isso não muda os fatos. Sou louca. Eu vi no espelho. Vi, vi, vi, não gosto do que vejo. A cara da esquizofrenia. Mãe, será que por detrás dos olhos tem uma outra pessoa que me vê?
Indagar era o seu forte. Eu gostava de Luzia porque ela trazia as perguntas e me fazia enxergar que estas não precisavam de respostas. Bastava indagar e você já estaria livre delas. 50 anos de vida e eu não havia aprendido isso. Eu só havia aprendido que em dissertações deveríamos responder à todas as perguntas. Mas todas as perguntas não possuem respostas, este é o problema. Problema. É por isso que se referem assim aos cálculos matemáticos. A resposta é sempre inventada... quem disse que é assim e que é exato, perdeu o juízo. Pois é amigos, este é o preço que se paga. Perde-se o juízo, caem os sizos.
- Ele tem 30 anos. Parece ter 24. Acho que ele gosta de mim.
- E você gosta dele?
- Não.
- E por que está com ele?
- Ele sempre me dá fogo. Eu comecei a fumar porque eu vi ele fumando, e eu o achava muito legal. Era lindo, ele tinha todo um estilo pra acender o cigarro... e o isqueiro mais bonito do mundo. Queria saber como chegar nele, mas não sabia como... e foi o cigarro que me levou até ele.
Luzia se lembrava da cena e um sorriso apareceu no seu rosto. "Sou boba", ela disse. Descreveu tudo com muitos detalhes. Ela era um gênio em descrições e indagações. Eu adorava Luzia como se fosse uma filha. Já havia falado isso até para a mãe dela, ela apenas ria. Luzia sempre disse que tinha perguntas para tudo, menos para ela mesma.
- Eu acho que ele gostou do meu estilo, meio esquizofrênica. A ex-namorada dele era muito estranha, ganhava de mim! Acho que ela se matou, ou algo do gênero, lembro que ele estava muito triste por causa dela. Até hoje ele meio que se lamenta, sabe... É doloroso vê-lo assim, mas já vão três anos... Eu conheci ele uns meses depois do ocorrido, então acho que ele gosta de mim porque eu ajudei-o a voltar a ser quem era.
- Vocês se conheceram como?
- Bom, ele é professor de Geografia. Estava estagiando no meu colégio, chegou a me dar aulas. Eu sempre o achei bonito, conversava muito com ele. Eu sempre gostei de geografia e política, então era um bom pretexto para ter uma conversinha com o professor estagiário. Ele era lindo... ele é lindo. De uma beleza sobrehumana. E não sei como foi olhar pra mim. Eu sentia aquela coisa quando ele explicava a matéria, sempre dava um jeito de dar uma olhadinha pra mim e sorrir. Seus dentes eram lindos, meio amarelados do cigarro, alinhados com precisão. Gabriel... aqueles olhos verdes, o gosto que tem por Bob Dylan e o violão que sempre carrega quando vai ao gasômetro. Há três anos estamos juntos. E eu não gosto dele. Mas eu sempre soube que devíamos estar juntos.
- E como vocês começaram a namorar?
- Fui numa festa junina do meu colégio. Ele estava lá, na barraca de quentão, conversando com o professor de física e o professor de história. Os três estavam fumando e tomando quentão. Cheguei e pedi um quentão para ele. Ele sorriu e me deu um copo. Eu tirei um maço de cigarro do bolso e perguntei se ele tinha fogo. Ele tirou do bolso um isqueiro lindo, da Marylin Monroe, e acendeu o cigarro pra mim, me olhando fundo nos olhos. Os outros professores ficaram olhando, meio desconfiados, pois sabiam que isso não deveria acontecer... Mas ao mesmo tempo não estavam nem aí. Conversamos um pouco, tomamos quentão, aí eu fiquei um pouco mais, depois que todos tinham ido, ajudando os professores a arrumarem as coisas. Ele me ofereceu uma carona. Não fui pra casa, fomos para o bairro Bom Fim tomar umas cervejas. Ele me beijou, depois me levou pra casa. Bom, já dá pra saber que o burburinho entre os professores foi forte e que o Gabriel foi demitido. Mas logo ele conseguiu outro estágio e nós continuamos saindo. Ele era tudo pra mim, até que um dia eu fui na casa dele.
- Mas isto era pra ser bom, não é?
- Pois é... mas não foi. Vi fotos dele com uma outra guria, uns três quadros espalhados pela sala. Perguntei quem era, senti que ele tinha a voz triste e um olhar cheio de lágrimas ao falar dela. Ele disse que ela tinha muitos problemas e que morreu há pouco tempo. Ele comentou algo sobre alguma doença, mas não sei se é verdade... Ela era muito parecida comigo, acho que por isso chamei a atenção dele... mas não sei não, ele ainda gosta dela. Mesmo passados três anos.
- E você acha que este sentimento dele por ela atrapalha algo entre vocês?
- Não. Mas sinto que ele só está comigo porque eu tenho algo que a lembra...
Luzia sentia muito pela morte da ex-namorada de Gabriel, porém não havia nada que ela podia fazer... Eu sentia muito por Luzia, ela só queria ser uma pessoa melhor.